Keynes e Friedman no plebiscito de 2014

Evolução das classes sociais conforme a PNAD 2010/FGV

Por Cléber Sérgio de Seixas

No próximo dia 26 o eleitor brasileiro vai de novo às urnas para participar de uma eleição de caráter plebiscitário. Novamente, como vem sendo desde 1994, as eleições presidenciais estão polarizadas entre dois modelos sócio-econômicos quase diametralmente opostos, capitaneados por dois partidos. 

De um lado o PT, cujas gestões Lula e Dilma promoveram políticas que resultaram, por exemplo, na mobilidade social de milhões de brasileiros e na saída do país do mapa mundial da fome. Lula e Dilma conseguiram articular estruturalmente crescimento econômico e políticas de distribuição de renda. Depois de 21 anos de uma ditadura militar, promotora de políticas favoráveis aos grandes capitais nacionais e estrangeiros, e após 12 anos de governos neoliberais, que recomendaram um Estado mínimo, defenderam as doutrinas liberais de mercado e praticaram políticas favoráveis ao capital financeiro, os governos petistas conseguiram estabelecer no país uma agenda pós-neoliberal, com um projeto societário que possibilitou a mobilidade social de milhões de brasileiros. Nesses 11 anos, “o país incorporou 16 milhões de famílias ao mercado de consumo moderno por conta das políticas sociais e de elevação do salário-mínimo que habilitam esses novos cidadãos ao crédito” (BELLUZZO, 2013, p.105). 

Sob o governo Lula, o Brasil passou a experimentar o crescimento em novos moldes. Outrora o modelo de crescimento brasileiro era concentrador, ou seja, quanto mais a renda nacional crescia, mais se concentrava em mãos de poucos. Este modelo tinha suas origens na teoria do bolo do economista Antônio Delfim Netto, segundo a qual o bolo da riqueza brasileira deveria crescer para só então ser repartido. O fato é que durante a ditadura militar o bolo cresceu, mas só os abastados conheceram-lhe o sabor. 

Num contexto de hiperinflação sob controle, o Brasil de Lula e Dilma elevou o ritmo de crescimento de renda da parcela mais pobre de sua população. Isso se deu, principalmente, com a ampliação das políticas de transferência de renda direta e com aumentos reais do salário-mínimo, redundando no aumento do poder de compra das camadas de menor poder aquisitivo. Aliada a isso, a expansão e facilitação do crédito estimulou a dinamização do mercado interno de consumo de massa. Foi assim que as camadas de menor renda puderam adquirir bens duráveis como geladeira, máquina de lavar roupa, forno de micro-ondas, telefone celular, automóvel e motocicleta. Com o aumento do consumo houve um estímulo ao investimento. O dinamismo do mercado de consumo interno fez com que grandes empresas nacionais, bem como grandes grupos estrangeiros, redescobrissem as regiões mais pobres, incluindo-as em seus planos de expansão dos negócios. Isso explica a instalação de grandes redes de supermercado e shopping centers em cidades de pequeno e médio porte e no interior do país. É a chamada inclusão pelo consumo. Programas como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) buscam ampliar os investimentos e a infraestrutura econômica e social. Um dos componentes mais importantes do PAC é o Minha Casa Minha Vida, programa que busca enfrentar o elevado déficit habitacional das famílias de renda mais baixa e ao mesmo tempo beneficiar o setor de construção civil, um dos que mais emprega no país.

Para vencer as eleições de 2002 o PT teve que tornar seu candidato palatável aos mercados. Para tal, formulou a Carta aos Brasileiros e valeu-se do marketing eleitoral para transformar o operário Lula no “Lulinha Paz e Amor”. O PT também abraçou - ou foi forçado a abraçar por pressão das sucessivas derrotas eleitorais de Lula - a realpolitik. Desse abraço resultou o assim chamado escândalo do “mensalão”, um caso típico de uso de caixa 2 amplificado pela grande mídia neoliberal com motivações puramente eleitorais e, assim, transformado no maior escândalo de corrupção da história da política nacional, o que, logicamente, está longe de ser verdade. Este artigo não se aprofundará na questão do mensalão. Por hora se resumirá a apresentar as opiniões sobre o assunto de dois juristas brasileiros de renome e de posições políticas antagônicas, a saber, Celso Antônio Bandeira de Mello e Ives Gandra. Segundo o primeiro o processo da AP 470 foi todo viciado porque o STF não aplicou o duplo grau de jurisdição e não adotou o in dubio pro reo. Já Gandra, em entrevista concedida à Folha, disse que não há possibilidade de convivência entre a teoria do domínio do fato e o in dubio pro reo. Afirmou também que não havia provas contra José Dirceu. É patente, e ficou mais notório durante todo o desenrolar da AP 470, que a grande mídia faz hoje o papel que deveria ser da oposição, já que esta última não tem mais projetos para o Brasil além do manjado e surrado receituário neoliberal, que será detalhado adiante. 

Do outro lado do front político dessas eleições temos o PSDB, o mais proeminente partido de oposição aos governos de Lula e Dilma, e o mais destacado representante do ideário neoliberal no Brasil. Sabe-se que o neoliberalismo deu seus primeiros passos em terras tupiniquins durante o governo Collor. No entanto, foi o PSDB na Presidência que o elevou aos píncaros. 

Já na primeira metade da década de 90 o PSDB abandonou a social democracia, mantendo-a apenas na sigla partidária, e se rendeu ao neoliberalismo. Uma demonstração eloquente da opção do PSDB pelos mecanismos neoliberais foi o discurso de Fernando Henrique Cardoso no Senado em 14 de dezembro de 1994, quando já havia se sagrado vencedor no pleito presidencial daquele ano. Eis alguns trechos do discurso: “Acontece que o caminho para o futuro desejado ainda passa, a meu ver, por um acerto de contas com o passado. Eu acredito firmemente que o autoritarismo é uma página virada na História do Brasil. Resta, contudo, um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas - ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista. (...) Atravessamos a década de 80 às cegas, sem perceber que os problemas conjunturais que nos atormentavam (...) mascaravam os sintomas de esgotamento estrutural do modelo varguista de desenvolvimento”. Como se depreende do discurso do senador em fim de mandato e prestes a assumir a Presidência, um dos objetivos perseguidos por seu governo seria a flexibilização das leis trabalhistas, pondo fim a décadas do mundo do trabalho sob a égide da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), uma das obras primas de Vargas. Flexibilizar é sinônimo de precarizar as condições de trabalho. Assim sendo, em nome de um suposto aumento de postos de trabalho e da produtividade das empresas, seriam sacrificados salários e direitos de milhares de trabalhadores. Felizmente para os brasileiros, o príncipe dos sociólogos, que deveria ser chamado de sociólogo dos príncipes, não logrou êxito em seu intento. No entanto, em seus oito anos de governo, FHC pôs em movimento vários outros mecanismos neoliberais. Dentre eles, o mais notório foi a onda de privatizações. 

Para os neoliberais, o Estado é o Grande Satã, o maior adversário da eficiência econômico-produtiva e o arquiinimigo do mercado. Sendo assim, faz-se necessário reduzi-lo ao mínimo possível. Isso é feito, dentre outras formas, privatizando empresas públicas. 

O Brasil experimentou sua maior onda privatista nos anos 90 sob FHC. Em termos da dimensão das privatizações, o país só ficou atrás da União Soviética, que abandonou uma economia planificada para ingressar na economia de mercado. Nem mesmo Margaret Thatcher, a matriarca do neoliberalismo, fez na Inglaterra uma desestatização semelhante à que foi feita aqui. 

O processo de privatizações brasileiro resultou numa receita de 100 bilhões de dólares, equivalente a 15% do PIB nacional da época. Esse valor foi parar em mãos privadas. Sem contrapartidas sociais, pelo contrário, as privatizações resultaram no desemprego de cerca de 500 mil trabalhadores.

Um dos motes das privatizações brasileiras era a redução das dívidas interna e externa. Ao privatizar o maior número possível de estatais, o Estado estaria, também, se capitalizando para, posteriormente, investir os dólares aportados, por exemplo, na melhoria dos sistemas de saúde, segurança e educação. O povo brasileiro seria o beneficiário da venda do patrimônio público. Contudo, como se viu, não foi bem isso o que ocorreu.

Na prática, a teoria acabou sendo outra. O torra-torra das estatais não capitalizou o Estado, ao contrário, as dívidas interna e externa aumentaram, porque o governo engoliu o débito das estatais leiloadas - para torná-las mais palatáveis aos compradores - e ainda as multinacionais não trouxeram capital próprio para o Brasil. Em vez disso, contraíram empréstimos no exterior e, assim, fizeram crescer a dívida externa. Para agravar o quadro, os cofres nacionais financiaram a aquisição das estatais e aceitaram moedas podres, títulos públicos adquiridos por metade do valor de face, na negociação. (JÚNIOR, 2011, p. 38).

Biondi (2003, p. 9) apresenta essa mesma questão da seguinte forma:

A venda das estatais, segundo o governo, serviria para atrair dólares, reduzindo a dívida do Brasil com o resto do mundo – e “salvando” o real. E o dinheiro arrecadado com a venda serviria ainda, segundo o governo, para reduzir também a dívida interna, isto é, aqui dentro do país, do governo federal e dos estados. Aconteceu o contrário: as vendas foram um “negócio da China” e o governo “engoliu” dívidas de todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar a dívida interna. Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras que “compraram” as estatais não usaram capital próprio, dinheiro delas mesmas, mas, em vez disso, tomaram empréstimos lá fora para fechar os negócios. Assim, aumentaram a dívida externa do Brasil. 

O caso da Vale do Rio Doce foi paradigmático do processo de privatizações levadas a cabo nos governos de Fernando Henrique Cardoso. A mineradora brasileira era a segunda maior do mundo e, em 1996, detinha um faturamento de 2 bilhões de dólares. A empresa foi vendida em 1997 por 3,3 bilhões de dólares. Na negociação foi atribuído valor zero às suas enormes reservas de minério de ferro, incluindo a, àquela altura, recém-descoberta jazida de Carajás, onde se supõe existir 10 bilhões de toneladas de minério, uma quantia capaz de suprir a demanda mundial por cerca de 400 anos. Menos de um ano após a venda, o faturamento da Vale alcançou 10 bilhões de dólares. Em 2011, a Vale valia 200 bilhões de dólares, ou seja, aproximadamente 60 vezes o valor pelo qual fora privatizada (JÚNIOR, 2011). 

É necessário entender que as privatizações não são um acidente de percurso na trajetória neoliberal, e sim uma de suas premissas. Portanto, faz-se necessário conhecer as origens e os mecanismos que sustentam as políticas neoliberais.

Inseminado no departamento de economia da Universidade de Chicago, tendo como um de seus genitores o economista norte-americano Milton Friedman, gestado na ditadura chilena de Pinochet, parido na Inglaterra de Thatcher e nos EUA de Reagan, o neoliberalismo, variante mais selvagem do capitalismo, tem como um de seus baluartes a condenação do intervencionismo estatal na economia. Segundo Betto (2006, p. 133, 135) o neoliberalismo “apregoa a exclusão do Estado da produção de riquezas e da administração de serviços. Ao Estado caberia zelar pelos interesses privados, defender o patrimônio particular, dirimir contendas e distribuir e excedente”. O neoliberalismo traz o laissez-faire de volta ao século XX e arrasta-o até o século XXI, apesar de o economista britânico John Maynard Keynes ter decretado sua morte em 1926. É possível afirmar que o maior inimigo atual do neoliberalismo é o welfare state keynesiano. Segundo Klein (2008, p. 69):

Os membros de Chicago não viam os marxistas como os seus verdadeiros inimigos. A origem autêntica dos problemas deveria ser buscada nas ideias dos keynesianos nos Estados Unidos, dos socialdemocratas na Europa e dos desenvolvimentistas no assim chamado Terceiro Mundo. 

O fundamentalismo “friedmanista” ou “friedmaníaco” é tributário de Adam Smith em seu A Riqueza das Nações ao considerar que “o livre mercado é um sistema científico perfeito, no qual os indivíduos, agindo em função de seus próprios interesses e desejos, criam o máximo benefício para todos” (KLEIN, 2008, p. 67). O único entrave a esse egoísmo sem freios e a essa acumulação irrestrita é a atuação estatal. Assim sendo, livrar o mercado de todas as interferências estatais é a missão de qualquer discípulo de Friedman. 

Para alcançar o livre mercado, os neoliberais, com base no que Friedman registrou em sua obra mais popular, Capitalismo e Liberdade, receitam as privatizações de empresas e serviços públicos, a desregulamentação do mercado financeiro e do trabalho e os cortes nos gastos sociais. Em outras palavras eles propõem:

Em primeiro lugar, os governos deveriam abolir todas as regras e regulamentações que se interpunham no caminho da acumulação de lucros. Em segundo, deveriam vender todos os ativos que possuíam e que podiam ser administrados pelas corporações, com fins lucrativos. E em terceiro, precisavam cortar dramaticamente os fundos destinados aos programas sociais (KLEIN, 2008, p. 73). 

O combate à inflação é um dos motivos apontados pelos neoliberais para justificar a aplicação das medidas acima elencadas. Segundo eles, salários altos, excesso de consumo e gastos públicos elevados são fatores causadores de um excesso de demanda inflacionário, prejudicial à poupança, à acumulação e ao crescimento. A receita proposta para retomar o crescimento, diminuir o consumo e, por conseguinte, a inflação, é aumentar o desemprego com vistas à redução de salários. Com menos consumo e mais poupança sobraria mais para investimentos que aumentariam a produtividade, diminuindo a inflação decorrente do excesso de demanda. Juros altos cumpririam um papel coadjuvante. 

Contudo, num ambiente de juros altos, o detentor do capital tende a optar pelo investimento financeiro-especulativo em detrimento do produtivo. Se não houver mercado, ou seja, empregos e aumento de salários reais, não se justifica a poupança com vistas a realizar investimentos que redundem no aumento de produtividade. 

No afã de manter a economia nas rédeas, apela-se, também, para o famoso tripé neoliberal, qual seja, a manutenção de um câmbio flutuante, com o valor do real oscilando conforme os humores do mercado; o estabelecimento de metas de inflação, isto é, manter os juros altos para combater a elevação dos preços; arrocho fiscal visando o pagamento dos juros da dívida (superávit primário). 

É possível identificar elementos da ideologia neoliberal nos discursos de Marina Silva e Aécio Neves. No caso de Marina, ficaram patentes os interesses corporativistas do setor bancário na proposta de conceder independência ao Banco Central. No caso de Aécio, as declarações de seu guru econômico, Armínio Fraga, deixam claro que o tucano no Planalto resultará num déjà vu das políticas econômicas da Era FHC; e todos os que têm mais de 35 anos sabem no que isso resultou. Não por acaso, Aécio e Marina estão juntos no segundo turno, com a última se revelando o que sempre foi: uma segunda via para o neoliberalismo tucano.

Assim sendo, cumpre aos brasileiros terem claro as consequências da vitória de Dilma ou de Aécio. A reeleição da primeira dará prosseguimento a um ciclo virtuoso iniciado em 2003 com Lula, ciclo este que conseguiu aliar crescimento econômico e distribuição de renda, gerando maciça inclusão social. Esse modelo pode garantir aos brasileiros uma era de bem estar social comparável àquela experimentada por europeus e estadunidenses no pós-guerra, período chamado de “era de ouro” pelo historiador Eric Hobsbawm. A eleição do segundo acarretará a desregulamentação da economia, a precarização das relações trabalhistas, a privatização do patrimônio público a preços módicos e a submissão da política externa às orientações de Washington, castrando a integração econômica sul-americana, ou seja, ocorrerá um revival do neoliberalismo em terras brasileiras.

Ao se colocar uma lente de aumento sobre Dilma e Aécio, não se verá PT e o PSDB, nem tampouco Lula e FHC, nem mesmo o desenvolvimentismo e o rentismo. O que se verá na realidade ampliada é Keynes e Friedman se digladiando para ver qual modelo prevalecerá aqui nos próximos quatro anos.

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Referências bibliográficas:

BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Os anos do povo. In: SADER, Emir (Org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p. 103-109.

BETTO, Frei. A Mosca Azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

BIONDI, Aloysio. O Brasil Privatizado: um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Perseu Abramo, 2003. 

JÚNIOR, Amaury Ribeiro. A Privataria Tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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