Um prisma chamado Getúlio



Por Cléber Sérgio de Seixas

O tiro que Getúlio Vargas deu no próprio peito nos idos de agosto de 1954 marcou uma era de profundas mudanças no cenário político, econômico e social brasileiro. 

A Era Vargas foi um divisor de águas na política nacional. Seu início marca o fim do Brasil oligárquico, agrário, cujo arranjo da Política do Café com Leite garantia a presença alternada de políticos mineiros e paulistas na presidência. Pode-se tranquilamente falar de um Brasil antes e depois de Getúlio. Seu fim legou um cenário de incertezas para os presidentes que o sucederam, de JK a Jango, sobre cujas cabeças sempre pairava a espada de Dâmocles do golpismo militar, até que na quartelada de 64 foram sepultadas todas as perspectivas democráticas.

Sob Vargas, emergiram o trabalhismo, o populismo e o sindicalismo (peleguismo para alguns críticos); o Brasil, que era predominante rural, se industrializou e urbanizou, levando as massas do campo às cidades; o gigante sul-americano se tornou potência mundial, apesar das enormes desigualdades sociais presentes em seu território.

Foi um governo ambíguo, que tanto simpatizava com o fascismo italiano e alemão, quanto flertava com a potência do norte. 

Com o envolvimento dos EUA na 2ª Guerra Mundial, estes exigiram do Brasil a escolha de um lado. A participação no conflito mundial com o envio de uma tropa de 25 mil homens e a instalação de bases militares na região nordeste garantiram ao Brasil o financiamento por parte dos Estados Unidos de sua indústria siderúrgica, com vistas ao fornecimento de minérios estratégicos, aço e borracha para o esforço de guerra estadunidense. 

A criação da VALE e da CSN marcaram o declínio do café como principal produto de exportação e sua substituição pelo minério de ferro. Os interesses econômicos norte-americanos no Brasil, no entanto, não concordavam com o crescimento de nossa indústria siderúrgica, haja vista que isso implicava na supressão das exportações de aço dos Estados Unidos para o Brasil, bem como na concorrência do aço brasileiro com aquele oriundo dos EUA nos mercados estrangeiros.  

Alguns historiadores apontam a morte de Roosevelt como o prelúdio do golpe de outubro de 1945, que apearia o ditador Vargas do poder e selaria o fim do Estado Novo.

O minério de ferro, junto com o petróleo, estiveram sempre nos bastidores dos golpes de Estado e tentativas de golpe contra Vargas e outros presidentes brasileiros. Como asseverou o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, é do subsolo que brotam os golpes na América Latina. Quebrando um acordo assinado com os EUA em 1952, em cujo teor se proibia a venda de matérias-primas do Brasil para países socialistas, o governo Getúlio vendeu ferro à Polônia e à Tchecoslováquia a preços mais altos que os praticados com a potência vizinha do norte (GALEANO, 1989). Esse evento, bem como o aumento de 100% do salário mínimo sob a batuta do ministro do trabalho João Goulart, a campanha “O petróleo é nosso”, e a consequente criação da Petrobrás, e o apoio a Samuel Wainer figuram como causas da trágica queda de Getúlio em agosto de 1954. 

Em seu governo democrático, Vargas enfrentou uma das mais ferrenhas oposições sofridas por um presidente por parte da mídia. Praticamente todos os veículos adotaram uma linha editorial contrária ao Palácio do Catete, com exceção do jornal Última Hora, do jornalista judeu-brasileiro Samuel Wainer. 

A oposição era capitaneada por Carlos Lacerda, deputado federal pela UDN e jornalista proprietário do jornal Tribuna da Imprensa. O atentado a Lacerda na Rua Tonelero (Rio de Janeiro) foi o ápice da crise que desaguaria no suicídio de Vargas nas dependências do Catete.

No dia 23 de agosto de 54, trinta generais assinaram um Manifesto à Nação no qual davam um ultimato a Vargas, exigindo que deixasse o poder. Era a pressão dos militares irmanados na República do Galeão. Nesse mesmo dia, o presidente realizou uma reunião com seu ministério na qual alertou: “só sairei morto do Catete”. Por volta das 04:30 do dia seguinte, Getúlio cumpria sua promessa. 

O legado da Era Vargas permanece apesar de governantes como Fernando Henrique Cardoso terem prometido enterrar o varguismo. O getulismo deixou-nos o salário mínimo, a Eletrobrás, a Petrobrás, o BNDES, a CAPES, as já citadas CSN e VALE, dentre outras.

Vargas também deixou uma carta-testamento, um dos mais importantes documentos da política brasileira em sua fase republicana, também uma síntese de sua trajetória política desde a Revolução de 30, bem como uma denúncia do golpismo que rondava seu governo.

O tiro foi dado antes que dessem o golpe. A bala que Vargas meteu no próprio peito freou a sanha dos golpistas e adiou o golpe militar por dez anos. 

Getúlio foi um prisma de muitas faces. Conseguia ser, simultaneamente, “pai dos pobres” e “mãe dos ricos”. Sufocou violentamente o Partido Comunista, mas também jogou a última pá de cal sobre o futuro político do integralismo, versão tupiniquim do nazifascismo. O Vargas que entregou Olga Benário, grávida, ao nazismo, foi o mesmo que criou a CLT, regulamentando e domando o mercado de trabalho. Vargas são, basicamente, três: o revolucionário de 30, o ditador estadonovista e o que chega ao poder pelo voto popular em 1950.

É possível amá-lo ou odiá-lo, nunca ignorá-lo.

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Referência bibliográfica
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 29 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.


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