A judicialização da política



Por Cléber Sérgio de Seixas

A aceitação dos embargos infringentes pelo STF, num apertado placar de 6 a 5, com o voto de minerva sendo proferido pelo decano Celso de Mello, foi um balde de água fria sobre as expectativas daqueles que queriam ver os réus da Ação Penal 470 sumariamente condenados. Os ânimos dos que torciam pela condenação imediata foram insuflados pela mídia, por muitos considerada o quarto poder da República com prerrogativa sobre os demais poderes. Desde o início, ficou patente a pressão da mídia hegemônica sobre os ministros do STF para que estes julgassem com severidade desmedida os réus do assim chamado “mensalão”. 

É preciso sublinhar que, hoje, tais meios fazem as vezes de um partido de oposição, já que os partidos que se opõem aos governos progressistas de Lula e Dilma não têm propostas para o Brasil além daquelas de cunho neoliberal que aqui foram aplicadas nos anos 90, nos governos Collor e Itamar e durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, e que ora estão promovendo um processo de “américo-latinização” em países como Portugal, Espanha e Grécia. A oposição e seus asseclas na grande mídia prescrevem o já manjado receituário neoliberal: privatizações, desregulamentação da economia e cortes nos gastos sociais. 

De uns anos pra cá, os ministros do STF deixaram de ser apenas juízes da mais alta corte brasileira para se tornarem verdadeiras celebridades. A constante exposição de ministros na mídia oposicionista, suas manifestações fora dos autos, o seguir de seus passos como se fossem pop-stars, por vezes os levaram a decidir de forma política e não tecnicamente. Quem esperava que a Ação Penal 470, também chamada de “mensalão”, fosse julgada de forma estritamente técnica se decepcionou. Joaquim Barbosa liderou um julgamento no STF que tinha tudo para ser técnico, mas tornou-se político na pior acepção da palavra, perdendo a isenção que dele se esperava.


Dois juristas posicionados em pólos diferentes do espectro político se manifestaram de forma favorável à aceitação dos embargos infringentes. Primeiro tivemos um Celso Antônio Bandeira de Mello, professor emérito da PUC/SP, que em entrevista ao site Viomundo, afirmou que o processo foi todo viciado porque o STF não aplicou o duplo grau de jurisdição e não adotou o princípio de que as pessoas são inocentes até que se prove o contrário. Pelo contrário, segundo o jurista, o princípio foi invertido, como no caso de José Dirceu, cuja culpabilidade derivou do fato de ele ser hierarquicamente superior aos demais envolvidos. Depois tivemos Ives Gandra - professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, da Escola Superior de Guerra, e um dos primeiros membros da Opus Dei no Brasil -, que em entrevista à jornalista Mônica Bérgamo, da Folha, disse que não há possibilidade de convivência entre a teoria do domínio do fato e o “in dubio pro reo”. Sobre o domínio do fato, Gandra afirmou que se trata de uma novidade absoluta no STF, uma teoria que nem na Alemanha, terra natal de seu autor, é aplicada. Sobre Dirceu, foi taxativo: “não há provas contra ele”. 

A forma política com que foi conduzido o julgamento fez corar de vergonha os juristas mais imparciais e preocupou outros tantos, como o supracitado Gandra, que vê na condenação de alguns réus do “mensalão” a abertura de um perigoso precedente que traz consigo uma enorme insegurança jurídica. No entanto, a análise acerca das distorções do julgamento da Ação Penal 470 não deve ficar somente no âmbito do Direito. Pelo contrário, pode e deve ser feita, também, à luz da Sociologia. 

Segundo o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, até os anos quarenta do século passado, os tribunais de países centrais, bem como aqueles de nações periféricas e semiperiféricas, tinham pouca visibilidade, ou seja, suas regras e seus agentes eram pouco conhecidos do grande público e seus litígios raramente captavam a atenção pública. A partir de meados da década de oitenta, quando dos primeiros lampejos neoliberais, casos de corrupção envolvendo políticos e grandes empresários começaram a chegar aos tribunais de vários países europeus. Esses casos ampliaram a visibilidade pública e conferiram um protagonismo político sem precedentes aos tribunais. Rapidamente, estes passaram a ocupar as principais páginas dos jornais e se tornaram alvo da curiosidade jornalística. Os magistrados, então, se tornaram figuras públicas (SANTOS, 2005). 

Esse fenômeno, que faz parte daquilo que tanto se pode chamar de despolitização como judicialização da política, ocorreu inicialmente em países europeus como Espanha, França, Itália e Portugal, mas, em virtude dos processos globalizantes, na última década teve suas versões em nações da América Latina, Leste Europeu e Ásia, respeitadas as diferenças regionais. Segundo o sociólogo português, apesar de tais diferenças, pode-se detectar alguns fatores comuns no novo protagonismo judicial. O primeiro deles consiste nas conseqüências da confrontação entre o princípio do Estado e o princípio do mercado na gestão da vida social, que resultou nas privatizações, na desregulamentação da economia, na desmoralização dos serviços públicos, na crise dos valores republicanos, num novo protagonismo do direito privado e na emergência de atores sociais poderosos para quem foram transferidas prerrogativas de regulação social. Disso derivou uma promiscuidade entre o poderio econômico e o político que, combinada com o enfraquecimento da idéia de bem público ou comum, traduziu-se na patrimonialização ou privatização do Estado, muitas vezes levada a cabo de forma ilegal. Nesse bojo, os crimes de colarinho branco e a corrupção foram os responsáveis pela notoriedade dos tribunais. O segundo fator reside na irreversibilidade e incontornabilidade da globalização capitalista que, combinada com a crise dos regimes comunistas, resultou na atenuação das diferenciações políticas, diminuindo, fragmentando e personalizando os conflitos políticos, ao ponto de transformá-los em conflitos judiciais (SANTOS, 2005, p. 87,88). Assim, do excesso de visibilidade pública dos tribunais e de seus juízes decorre a judicialização da política ou, dito de outra forma, a politização do judiciário. 

O julgamento da Ação Penal 470 exponenciou, com nunca antes na história desse país, o processo de exposição na mídia de juízes do STF. Esses, sob as luzes dos holofotes midiáticos, muitas vezes decidem com base na opinião publicada, e sob a chantagem da mesma, e não conforme os autos. Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Joaquim Barbosa são filhos desse processo. Este último foi alçado à condição de paladino da imprensa conservadora por sua implacável postura como relator do mensalão, algo consoante os interesses políticos da grande mídia e a oposição de direita que ela representa, mas finge não representar.

Judicializar a política não é a solução, até porque os tribunais tupiniquins, em especial o STF, nem sempre tiveram isenção suficiente para decidirem de forma técnica e imparcial. Não deve ser esquecida a decisão do STF de expulsar Olga Benário do território nacional - uma sentença de morte não declarada -, nem tampouco a chancela de nossa corte suprema a todas as ditaduras brasileiras, como foi com a ditadura de Vargas e a ditadura militar. 


Referência bibliográfica

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

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