Solteiras, muito embora casadas

 

Por Cléber Sérgio de Seixas

Cenário 1 – O casal está na iminência de levar os dois filhos ao cinema de um shopping center. Enquanto a mãe se vê às voltas com a preparação das crianças para o passeio, o pai, já pronto para sair, acessa redes sociais pelo celular, perdendo-se num emaranhado de vídeos e mensagens. Ao perceber que o prazo para sair se esgota, ele passa a cobrar mais agilidade da esposa para não se atrasarem, acrescentando que ela gasta muito tempo se maquiando.

Cenário 2 – Amélia é professora concursada na rede municipal de sua cidade, atuante em dois turnos letivos. Seu companheiro está desempregado há quase um ano. É comum que, após cumprir jornada de trabalho em duas escolas, no retorno ao lar ela se depare com demandas como preparação do jantar, banho dos filhos e correção da lição escolar destes. Não raro, seu companheiro liga para ela em pleno expediente para perguntar-lhe sobre qual medicamento ministrar quando um dos filhos está doente. Amélia dorme tarde e acorda cedo. Detalhe: o carro da família fica com o cônjuge, mesmo sendo ela quem mais precisa do veículo para o deslocamento ao trabalho.

Cenário 3 – Conceição está casada há cerca de 10 anos com Alonso, com quem tem um filho de seis anos. Ambos trabalham fora, contudo, o local de trabalho de Conceição é mais distante de sua residência, comparado ao do marido. Em que pese isso, quando é necessário levar o filho ao médico ou comparecer a uma reunião de pais e mestres na escola, ficam sempre a cargo de Conceição tais responsabilidades, mesmo que isso resulte em faltas ou saídas antecipadas do trabalho.

Cenário 4 – Maria Auxiliadora é empregada doméstica. Ao todo, ida e volta, toma quatro conduções no deslocamento casa-trabalho-casa. Quando chega do trabalho, altas horas, após ter buscado os filhos, prepara o jantar e a marmita para o marido, além de realizar pequenos afazeres domésticos. Seu cônjuge chega do trabalho depois dela. Durante a semana, Auxiliadora deixa os três filhos com uma vizinha, a quem paga uma quantia simbólica pelos serviços. Seu fim de semana é dedicado à faxina da casa, tarefa da qual seu marido não participa alegando cansaço. Praticamente não sobra tempo para o lazer. O parceiro de Maria vem reclamando da pouca disposição dela para o sexo, dizendo não entender o motivo da falta de libido da mulher. Chegou a dizer, certa feita, que desconfiava da fidelidade da esposa.

Todos os cenários acima, apesar de hipotéticos, têm inspiração no cotidiano vivenciado por várias mulheres que são esposas e mães. Em algum momento, algumas delas podem ter se deparado com situações análogas em cujos enredos subjaz uma cultura que considera incumbências de mulher os cuidados do lar e dos filhos.

Minha esposa costuma dizer que a maioria das mães, mesmo as casadas, são mães solo sem sabê-lo. De fato, muitas delas se encontram sobrecarregadas pela exclusividade no cuidado da prole: quando o bebê chora à noite, é a mãe quem vai acalentá-lo; quando o filho tem algum problema de saúde na escola, liga-se para a mãe; quando é necessário levar o rebento ao médico, lá se vai a genitora à custa da perda de horas ou de um dia de trabalho; quando é chegada a hora, é a mãe quem se encarrega de pôr os filhos para dormir.

A existência de mães solo casadas decorre da cultura machista e patriarcal hora prevalente. Os homens não são social e culturalmente preparados para serem cuidadores, enquanto nas mulheres, desde tenra idade é aguçado o instinto maternal. Neto (1982, p. 01), estudando o papel de crianças na divisão do trabalho da família urbana na periferia da cidade de Salvador (BA) afirma que “se verifica nessa população que a criança do sexo feminino desde muito cedo é treinada para as tarefas domésticas, para o papel de dona de casa e de mãe”. A autora chama esse processo de “adultização da criança”. Predomina uma educação conservadora em que se preconiza que tarefas como faxina da casa, lavar as roupas e certos cuidados com os filhos são coisas de mulher. Além disso, diz-se por aí que mulheres devem ser belas, recatadas e do lar.

A mulher casada que é mãe solo tem pouco tempo para si, pois as horas gastas na lida com os filhos e com a casa acabam minando o tempo que teria, por exemplo, para estudar visando progredir na carreira profissional. Desse modo, seu tempo de vida se converte em mero tempo de trabalho.

Cabe sublinhar que este texto não trata de mães e esposas que não trabalham fora do lar. O foco aqui incide sobre aquelas que trabalham de forma remunerada fora de casa e de forma não remunerada em seus domicílios.

Há uma tendência de se invisibilizar o trabalho doméstico, desconsiderando-o enquanto categoria laboral. Para Reid (1934) constitui trabalho doméstico atividades que demandam esforço físico e mental e cujo resultado é a transformação de um bem ou a realização de um serviço, feitos por um ou mais ocupantes do domicílio sem que haja remuneração por sua realização. Fazem parte do trabalho doméstico atividades como preparo de alimentos, limpeza do ambiente e do vestuário, compras, cuidado de membros da família como crianças, idosos e enfermos, entre outros. Em que pese serem atividades não remuneradas, mutatis mutandis, trata-se, em última instância, de trabalho. Assim não fosse, não se contratariam faxineiras, lavadeiras ou babás para afazeres domésticos.

Em 2012 os institutos Data Popular, SOS Corpo e Patrícia Galvão, realizaram uma pesquisa1 para conhecer o trabalho produtivo e reprodutivo no cotidiano das mulheres brasileiras. Entre os meses de março e julho daquele ano foram realizados 08 grupos de discussão com mulheres e homens da cidade de São Paulo e Recife, bem como foram ouvidas 800 trabalhadoras de oito estados (PE, CE, BA, SP, RJ, MG, RS e PA) e do Distrito Federal. A pesquisa deu conta de que 98% das entrevistadas, além de trabalhar fora, também cuidam de casa. Revelou também que 71% das mulheres casadas do universo pesquisado não contam com ajuda masculina na realização de nenhuma tarefa doméstica. O estudo também apontou que 22% das mulheres pesquisadas não realizam nenhuma atividade de lazer. Dentre as que realizam, assistir novela é a principal modalidade.

O trabalho doméstico não afeta negativamente a masculinidade. Ninguém será menos homem se lavar a louça, cobrar do filho a execução da tarefa escolar de casa ou pentear os cabelos da filha. Ninguém será menos pai se, ao invés de levar o filho ao jogo de futebol, ficar em casa com este enquanto a esposa conclui o TCC da pós-graduação. Os melhores pais são os que participam da criação dos filhos em todos os seus aspectos. Não se pode ser pai apenas na hora de levar o filho à escolinha de futebol, acompanhá-lo numa partida de videogame ou por ocasião de presentear a prole no Natal. Um pai de todas as horas acompanha o desempenho escolar dos filhos bem como realiza a faxina enquanto a esposa trabalha.

Nesses tempos sombrios, urge uma mudança de paradigmas. Trabalho doméstico não pode ser considerado coisa de mulher, mas responsabilidade de quem ocupa o lar. Não é razoável considerar que apenas a mulher/esposa/mãe seja responsável pelos afazeres domésticos e pelo cuidado dos filhos se tanto ela quanto o marido trabalham fora.

Concordo com a assertiva de minha esposa de que muitas mulheres casadas convivem com seus parceiros como se solteiras fossem por conta da sobrecarga de responsabilidades no lar. Não são poucas as que não se enxergam em relacionamentos tóxicos para si. Resta a indagação: pode-se considerar abusivo um relacionamento em que o cuidado dos filhos e as rotinas domésticas são de exclusiva responsabilidade da mulher? Deixo a resposta a cargo do(a) leitor(a).


Referências bibliográficas

- NETO, M. O que menina "pode" e "deve" fazer: o papel da criança do sexo feminino na divisão do trabalho da família urbana. Revista de Cultura da Universidade Federal da Bahia, v. 30, 1982.

- REID, M. G. Economics of Household Production. New York: [s.n.], 1934.

1 Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/pnpm/48a-reuniao/palestra-6-trabalho-domestico-sos-corpo.pdf Acesso em: 16 jan. 2024.


Comentários