Rolés, consumo e repressão
Por Cléber Sérgio de Seixas
Quando o Boulevard Shopping foi inaugurado na região dos
bairros Santa Tereza, Floresta e Santa Efigênia, em Belo Horizonte , eu
trabalhava nas proximidades. Alguns colegas de trabalho, gente de classe média,
foram visitar o novo empreendimento comercial em seus primeiros dias de
funcionamento. De lá voltaram afirmando que o shopping era amplo, bonito, tinha
muitas lojas, mas era muito mal freqüentado, pois, nas palavras deles, “só
tinha favelado”.
Para quem não conhece, o Boulevard Shopping fica próximo às
Torres Gêmeas, condomínio de dois edifícios do residencial Saint Martin cujos
apartamentos foram invadidos por 170 famílias de sem-casa. Um parêntese: a
política higienista que hora grassa em Belo Horizonte vai
por abaixo as Torres Gêmeas e em seu lugar construirá o maior arranha-céu de
Minas Gerais. Naqueles dias, muitos moradores das Torres Gêmeas foram dar um
rolé no shopping recém-inaugurado.
Os da periferia já conhecem de longa data a gíria rolé. É
comum ouvir um jovem perguntar a outro: “vamo dá um rolé ali, Zé?”. É como
dizer: “vamos sair por ai!”, “vamos nos divertir!”. Todos sabem que os jovens de periferia não
têm muitas opções de lazer nas regiões onde moram. Também é sabido que uma
perversa magia associou lazer e consumo, tornando-os gêmeos siameses. O
paradigma dessa associação é o shopping center. Assim, para muitos, a opção da
hora é ir ao shopping.
Os rolés nos shopping centers já existem em estado potencial
há décadas. Em qualquer shopping é comum ver pequenos grupos de jovens de
periferia perambulando por seus corredores, “zuando” e pouco ou nada consumindo.
São aqueles que meus antigos colegas de trabalho qualificaram como favelados. Em
busca de afirmação pessoal, os jovens pobres vão aos shoppings para ostentar
roupas e calçados de marca, mesmo que o calçado e as roupas sejam falsificados,
mesmo que a aparência não corresponda à essência ou, na melhor das hipóteses,
mesmo que todo o salário do mês tenha integralmente se convertido no tênis ou
na roupa de marca. Quando não é possível ostentar, vão apenas para visualizar
os objetos do desejo nas vitrines.
Sozinhos ou em pequenos grupos, são tolerados. Quando se
ajuntam em grupos maiores e resolvem dar uma volta nos templos de consumo, nos
moldes do que ocorreu recentemente em São Paulo , consciente ou inconscientemente, estão
pondo em relevo as desigualdades do atual sistema econômico.
Entretanto, os rolés estão mais para a antropologia do que
para a sociologia. É uma questão eminentemente comportamental, embora em seu
cerne seja inegável a presença de um componente sócio-político.
É possível traçar um paralelo entre os atuais rolezinhos e o
funk ostentação. Ambos se incluem no âmbito do modal de inclusão pelo consumo
que se observa no Brasil desde o primeiro quartel da década passada. Não se
trata da melhor forma de inclusão, diga-se de passagem, porque, por exemplo,
resulta na produção mais de consumidores que de cidadãos. Melhor seria que os
jovens fossem primeiro incluídos pela educação e pela cultura, com o respaldo
de reformas estruturais.
Contudo, é inquestionável que se trata de uma massiva
inclusão social que propicia o acesso a bens de consumo, como fica claro pela
constatação de que 40 milhões de brasileiros foram retirados da pobreza nos
últimos 10 anos. As famílias assim incluídas possuem em suas residências eletrodomésticos
e aparelhos eletrônicos nunca antes imaginados (microondas, geladeiras duplex,
televisões de LCD, notebooks etc). Não obstante, o tipo de consumo celebrado
nas letras do funk ostentação está além daquele propiciado pelas políticas econômicas
da ultima década. Trata-se da apologia a um estilo de vida marcado pelo
consumismo, estilo esse cujo acesso de negros e pobres só é possível via
carreira artística, no futebol ou no tráfico. Tanto os rolés quanto os funks de
ostentação são a confissão de que o processo iniciado em 2003 é ainda
inconcluso, haja vista que o Brasil segue sendo uma das nações mais desiguais
do mundo.
Os muros que separam os que consomem daqueles que não têm
como consumir só permanecerão invisíveis se estes últimos se mostrarem ou se
portarem conforme os padrões exigidos pela sociedade do consumo. O pobre só será
bem aceito no shopping centers se seu proceder e sua indumentária corresponderem
aos padrões sócio-econômicos inerentes a tal ambiente. Em outras palavras, se o
adolescente pobre se vestir e mantiver um comportamento condizente aos
supracitados padrões, será respeitado o seu direito de ir, vir e consumir. Caso
tal jovem resolva romper os padrões, vestindo-se ou se portando diferentemente do
que foi estabelecido, os muros se tornarão violentamente altos e visíveis e a
repressão virá com toda a força. A sociedade burguesa conservadora precisa que
os pobres tenham comportamentos e aparências de ricos para, sem restrições, serem
aceitos em seus nichos de consumo.
A restrição do acesso a shoppings e as reações violentas aos
rolés trouxe novamente à baila a tese da luta de classes. Parodiando Josué de
Castro, diria que o mundo se divide em dois grupos: o grupo dos que não consomem
e o grupo dos que não dormem com receio da invasão dos que não consomem. São as
verdadeiras invasões bárbaras à Roma capitalista.
Uma das colegas de trabalho a que me referi no início deste artigo,
sempre que podia, visitava uma das favelas cariocas para frequentar um baile
funk notório por receber “gente bonita”, de classe média alta. Não havia nenhum
impedimento ao trânsito da mesma naquele ambiente, pelo contrário, sempre fora
muito bem recebida. Estabelece-se, assim, uma situação em que se observam dois
pesos e duas medidas. Enquanto o jovem pobre enfrenta restrições e se depara
com um muro invisível ao tentar frequentar lugares reservados a patricinhas e
mauricinhos, os ricos têm livre acesso ao meio ambiente dos pobres e favelados,
como provam o acesso irrestrito aos bailes funk nos morros cariocas e o passe
livre às favelas para comprar e consumir drogas. Existem também os safáris
urbanos, em que turistas estrangeiros fazem tours
nas favelas do Rio de Janeiro (não gosto de utilizar o termo comunidade, por
acreditar que não passa de um eufemismo), serpenteando por seus becos,
invadindo barracos alheios e conhecendo a criatividade que gente sem eira nem
beira utiliza para sobreviver.
A questão de fundo dos rolezinhos é a demarcação de
território. Sempre que a senzala tomar de assalto os salões da Casa Grande,
haverá estupefação, num primeiro momento, e repressão num segundo. Em suma, o
asfalto pode subir e descer o morro, mas o morro, a periferia, o arrabalde não
devem se atrever a romper os limites impostos pelo asfalto, sob pena de serem
duramente reprimidos.
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